Manipulação

A Manipulação do Homem

através da Linguagem

 

 O domínio e controle sobre as pessoas se leva a cabo mediante as 

Técnicas de manipulação

 

Se quisermos colaborar eficazmente a construir uma sociedade melhor, mais solidária e mais justa, devemos identificar os ardis da manipulação e aprender a pensar com todo o rigor. Não é muito difícil. Um pouco de atenção e agudeza crítica nos permitirá desmascarar as prestidigitações de conceitos que se estão cometendo e aprender a fazer justiça à realidade. Esta fidelidade ao real nos proporcionará uma imensa liberdade interior.

 Não basta viver num regime democrático para ser livres de verdade. A liberdade deve ser conquistada dia a dia opondo-se àqueles que ardilosamente tentam dominar-nos com os recursos dessa forma de ilusionismo mental que é a manipulação. Esta conquista só é possível se tivermos uma idéia clara a respeito de quatro questões: 1º) O que significa manipular? (2º) Quem manipula? (3º) Para que manipula? (4º) Que tática utiliza para este fim? A análise destes quatro pontos permitir-nos-á discernir se é possível dispor de um antídoto para a manipulação. Estamos a tempo de defender nossa liberdade pessoal e tudo o que ela representa. Façamo-lo decididamente.

1. O que significa manipular?

Manipular equivale a manejar. Somente os objetos são suscetíveis de manejo. Posso utilizar uma esferográfica para minhas finalidades, guardá-la, trocá-la, descartá-la. Estou no meu direito, porque se trata de um objeto. Manipular é tratar uma pessoa ou grupo de pessoas como se fossem objetos, a fim de dominá-los facilmente. Essa forma de tratamento significa um rebaixamento, um aviltamento.

Esta redução ilegítima das pessoas a objetos é a meta do sadismo. Ser sádico não significa ser cruel, como geralmente se pensa. Implica em tratar uma pessoa de uma forma que a rebaixa de condição. Esse rebaixamento pode realizar-se através da crueldade ou através da ternura erótica. Quando, ainda em tempos recentes, introduzia-se um grupo numeroso de prisioneiros num vagão de trem como se fossem embrulhos, e os faziam viajar durante dias e noites, o que se pretendia não era tanto fazê-los sofrer, mas aviltá-los. Sendo tratados como meros objetos, em condições subumanas, acabavam considerando-se mutuamente seres abjetos e repelentes. Tal consideração os impedia de unirem-se e formar estruturas sólidas que poderiam gerar uma atitude de resistência. Reduzir uma pessoa à condição de objeto para dominá-la sem restrições é uma prática manipuladora sádica. É muito conveniente distinguir nitidamente nossos dois planos: o corpóreo e o espiritual, o que é passível de ser manejado e o que requer respeito.

 A principal tarefa dos manipuladores consiste em ocultar a violência sob o véu sedutor do fomento das liberdades.

2. Quem manipula?

Manipula aquele que quer vencer-nos sem convencer-nos, seduzir-nos para que aceitemos o que nos oferece sem dar-nos razões. O manipulador não fala à nossa inteligência, não respeita nossa liberdade; atua astutamente sobre nossos centros de decisão a fim de arrastar-nos a tomar as decisões que favorecem seus propósitos.

Manipulação é uma forma sutil de engano.

O tipo de manipulação feita em comerciais costuma acompanhar outra muito mais perigosa ainda: a manipulação ideológica, que impõe idéias e atitudes de forma oculta, graças à força de arrasto de certos recursos estratégicos. Assim, a propaganda comercial difunde, muitas vezes, a atitude consumista e a faz valer sob o pretexto de que o uso de tais e quais artefatos é sinal de alta posição social e de progresso.

Quando se quer impor atitudes e idéias referentes a questões básicas da existência – a política, a economia, a ética, a religião… -, a manipulação ideológica torna-se extremamente perigosa. Atualmente, muitas vezes se entende por “ideologia” um sistema de idéias esclerosadas, rígido, que não suscita adesões por carecer de vigência e, portanto, de força persuasiva. Se um grupo social assume radicalmente este sistema como programa de ação e quer impô-lo, só dispõe de dois recursos: um. A violência, que se encaminha para a tirania, dois. A astúcia e recorre à manipulação. As formas de manipulação praticadas por razões “ideológicas” costumam mostrar um notável refinamento, já que são programadas por profissionais de estratégia [2] .

Ponderado não constituem uma massa, mas sim uma comunidade, um povo. Duas pessoas, um homem e uma. Três: Para que se manipula?

A manipulação corresponde, em geral, à vontade de dominar pessoas e grupos em algum aspecto da vida e dirigir sua conduta. A manipulação comercial quer converter-nos em clientes, com o simples objetivo de que adquiramos um determinado produto, compremos entradas para certos espetáculos, nos associemos ao clube tal… O manipulador ideólogo pretende modelar o espírito de pessoas e povos a fim de adquirir domínio sobre eles de forma rápida, contundente, massiva e fácil. Como é possível dominar um povo desta forma? Reduzindo-o de comunidade a massa.

As pessoas, quando têm idéias valiosas, convicções éticas sólidas, vontade de desenvolver todas as possibilidades de seu ser, tendem a unir-se solidariamente e estruturar-se em comunidades. Devido à sua coesão interna, uma estrutura comunitária torna-se inexpugnável. Pode ser destruída de fora com meios violentos, mas não dominada interiormente por meio de assédio espiritual. Se as pessoas que integram uma comunidade perdem a capacidade criadora e não se unem entre si com vínculos firmes e fecundos, deixam de integrar-se numa autêntica comunidade; dão lugar a um punhado amorfo de meros indivíduos: uma massa. O conceito de massa é qualitativo, não quantitativo. Um milhão de pessoas que se manifestam numa praça com um sentido bem definido e mulher, que compartilham a vida numa casa, mas não se encontram devidamente unidas formam uma massa. A massa se compõe de seres que agem entre si como se fossem objetos, através de justaposição e choque. A comunidade é formada por pessoas que unem seus âmbitos de vida para dar lugar a novos âmbitos e enriquecer-se mutuamente.

Ao carecer de coesão interna, a massa é facilmente dominável e manipulável pelos sequiosos do poder. Isso explica que a primeira preocupação de todo tirano -tanto nas ditaduras como nas democracias, já que em ambos os sistemas políticos existem pessoas desejosas de vencer sem necessidade de convencer- seja a de privar as pessoas, na maior medida possível, da capacidade criadora. Tal despojamento se leva a cabo mediante as táticas de persuasão dolosa que a manipulação mobiliza.

4. Como se manipula?

Numa democracia as coisas não são fáceis para o tirano. Ele quer dominar o povo, e deve fazê-lo de forma dolosa para que o povo não perceba, pois, numa democracia, o que os governantes prometem é, antes de tudo, liberdade. Nas ditaduras se promete eficácia à custa das liberdades. Nas democracias se prometem níveis nunca alcançados de liberdade ainda que à custa da eficácia. Que meios um tirano tem à sua disposição para submeter o povo enquanto o convence de que é mais livre do que nunca?

Esse meio é a linguagem. A linguagem é o maior dom que o homem possui, mas também, o mais arriscado. É ambivalente: a linguagem pode ser terna ou cruel, amável ou displicente, difusora da verdade ou propagadora da mentira. A linguagem oferece possibilidades para, em comum, descobrir a verdade, e proporciona recursos para tergiversar as coisas e semear a confusão. Basta conhecer tais recursos e manejá-los habilmente, e uma pessoa pouco preparada mas astuta pode dominar facilmente as pessoas e povos inteiros se estes não estiverem de sobreaviso. Para compreender o poder sedutor da linguagem manipuladora, devemos estudar quatro pontos: os termos, o esquemas, as propostas e os procedimentos.

A) Os termos

A linguagem cria palavras, e em cada época da história algumas delas adquirem um prestígio especial de forma que ninguém ousa questioná-la. São palavras “talismã” que parecem condensar em si tudo que há de excelente na vida humana.

A palavra talismã de nossa época é liberdade. Uma palavra talismã tem o poder de prestigiar as palavras que dela se aproximam e desprestigiar as que se opõem ou parecem opor-se a ela. Hoje se aceita como óbvio -o manipulador nunca demonstra nada, assume como evidente o que lhe convém- que a censura -todo tipo de censura- sempre se opõe à liberdade. Conseqüentemente, a palavra censura está atualmente desprestigiada. Já as palavras independência, autonomia, democracia, co-gestão estão unidas com a palavra liberdade e convertem-se, por isso, numa espécie de termos talismã por aderência.

O manipulador dos termos talismã sabe que, ao introduzi-los num discurso, o povo fica intimidado, não exerce seu poder crítico, aceita ingenuamente o que lhe é proposto.

Se quisermos ser interiormente livres de verdade, devemos perder o medo da linguagem do manipulador e matizar o sentido das palavras. O primeiro mandamento do demagogo é não matizar a linguagem. De fato, ele alude à liberdade, à “liberdade de manobra”, à liberdade -neste caso- de cada um manobrar, segundo seu capricho, as pessoas: respeitá-la ou destruí-las. A “liberdade de manobra” não é propriamente uma forma de liberdade; é antes uma condição para ser livre. Alguém começa a ser livre quando, podendo escolher entre diversas possibilidades, -liberdade de manobra- opta por aquelas que lhe permitem desenvolver sua personalidade de modo completo. Mas uma pessoa que utilize essa liberdade de manobra contra as pessoas estará se orientando para a plenitude de seu ser pessoal? Viver pessoalmente é viver fundando relações comunitárias, criando vínculos. Aquele que rompe vínculos fecundíssimos com a vida destrói na raiz seu poder criador e, portanto, bloqueia seu desenvolvimento como pessoa.

Tudo isto se vê claramente quando se reflete. Mas o demagogo, o tirano, o que deseja conquistar o poder pela via rápida da manipulação, age com extrema rapidez para não dar tempo de pensar e submeter à reflexão pausada cada um dos temas. Com isso não se detém nunca para matizar os conceitos e justificar o que afirma; como se houvesse um grande consenso expõe com termos ambíguos, imprecisos. Isso lhe permite a cada momento destacar dos conceitos o aspecto que interessa a seus fins. Quando realça um aspecto, o faz como se fosse o único, como se todo o alcance de um conceito se limitasse a essa vertente. Dessa forma evita que as pessoas a quem se dirige tenham elementos de juízo suficientes para esclarecer as questões por si mesmas e fazerem uma idéia serena e bem ponderada dos problemas tratados. Ao não poder aprofundar-se numa questão, o homem está predisposto a deixar-se arrastar. É uma árvore sem raízes que qualquer vento leva, principalmente se este sopra a favor das próprias tendências elementares. Para facilitar seu trabalho de arraste e sedução, o manipulador afaga as tendências inatas das pessoas e se esforça em obstruir seu sentido crítico.

Toda forma de manipulação é uma espécie de malabarismo intelectual. Um mágico, um ilusionista faz truques surpreendentes que parecem “mágicas” porque realiza movimentos muito rápidos que o público não percebe. O demagogo procede desse mesmo modo, com estudada precipitação, a fim de que as multidões não percebam seus truques intelectuais e aceitem como possíveis as escamoteações mais inverossímeis de conceitos. Um manipulador proclama, por exemplo, às pessoas que “lhes devolveu as liberdades”, mas não se detém para precisar a que tipo de liberdades se refere: se são as liberdades de manobra que podem levar a experiências de fascinação -que precipitam o homem na asfixia- ou a liberdade para serem criativos e realizar experiências de encontro, que leva ao pleno desenvolvimento da personalidade. Basta pedir a um demagogo que matize um conceito para desvirtuar suas artes hipnóticas.

Na verdade, Ortega y Gasset tinha razão ao advertir: “Cuidado com os termos, que são os déspotas mais duros que a humanidade padece!”. Um estudo, por sumário que seja, da linguagem nos revela que “na história as palavras são freqüentemente mais poderosas que as coisas e os fatos”. (M. Heidegger [3] ).

B) Os esquemas mentais

Do mau uso dos termos decorre uma interpretação errônea dos esquemas que articulam nossa vida mental. Quando pensamos, falamos e escrevemos, estamos sendo guiados por certos pares de termos: liberdade-norma, dentro-fora, autonomia-heteronomia… Se pensarmos que estes esquemas são dilemas, de forma que devamos escolher entre um ou outro dos termos que os constituem, não poderemos realizar nenhuma atividade criativa na vida. A criatividade é sempre dual. Se penso que o que está fora de mim é diferente, distante, externo e estranho a mim, não posso colaborar com aquilo que me rodeia e anulo minha capacidade criativa em todos os níveis.

Aqui está o temível poder dos esquemas mentais: Se um manipulador lhe sugere que para ser autônomo em seu agir você deve deixar de ser heterônomo e não aceitar nenhuma norma de conduta que lhe seja proposta do exterior, diga-lhe que é verdade, mas só em um caso: quando agimos de modo passivo, não criativo. Seus pais pedem que você faça algo, e você obedece  forçado. Então você não age autonomamente. Mas suponhamos que você percebe o valor do que foi sugerido e o assume como próprio. Esse seu agir é ao mesmo tempo autônomo heterônimo, porque é criativo.

O educador não penetra na área de imantação dos grandes valores, e nós os vamos assumindo como algo próprio, como o mais profundo e valioso de nosso ser.

Agora vemos com clareza a importância decisiva dos esquemas mentais. Um especialista em revoluções e conquista de poder, Stalin, afirmou o seguinte: “De todos os monopólios de que desfruta o Estado, nenhum será tão crucial como seu monopólio sobre a definição das palavras. A arma essencial para o controle político será o dicionário”. Nada mais certo, desde que vejamos os termos dentro do quadro dinâmico dos esquemas, que são o contexto em que desempenham seu papel expressivo.

C) As abordagens estratégicas

Com os termos da linguagem se propõem as grandes questões da vida. Devemos ter o máximo cuidado com o que se propõe. Se você aceita uma proposta, vai ter que ir para onde o levem. Desde a infância deveríamos estar acostumados a discernir quando uma proposta é autêntica e quando é falsa. Nos últimos tempos as coisas estão mal colocadas, com a finalidade estratégica de dominar o povo, quase sempre são abordados de forma sentimental, como se apenas se tratasse de resolver problemas agudos de certas pessoas. Para comover o povo, apresentam-se cifras exageradas , tais cifras são um ardil do manipulador.

D) Os procedimentos estratégicos

Há diversos meios para dominar o povo sem que este repare. Vejamos um exemplo; nele eu não minto, mas manipulo. Três pessoas falam mal de uma Quarta, e eu conto a esta exatamente o que me disseram, mas altero um pouco a linguagem. Em vez de dizer que tais pessoas concretas disseram isso, digo que é o pessoal que anda falando. Passo do particular ao coletivo. Com isso não só infundo medo a essa pessoa, mas também angústia, que é um sentimento muito mais difuso e penoso. O medo é um temor ante algo adverso que nos enfrenta de maneira aberta e nos permite tomar medidas. A angústia é um medo envolvente. Você não sabe a que recorrer. Onde está “o pessoal” que te atacou com maledicências? “O pessoal” é uma realidade anônima, envolvente, como neblina que nos envolve. Sentimo-nos angustiados.

Tal angústia é provocada pelo fenômeno sociológico do boato, que parece ser tão poderoso quanto covarde devido a seu anonimato. “Andam dizendo tal ministro praticou um desvio de verbas”. Mas quem anda dizendo? “O pessoal, ou seja, ninguém em concreto e potencialmente todos”.

Outra forma tortuosa, sinuosa, sub-reptícia, de vencer o povo sem preocupar-se em convencê-lo é a de repetir uma e outra vez, através dos meios de comunicação, idéias ou imagens carregadas de intenção ideológica. Não se entra em questões, não se demonstra nada, não se vai ao fundo dos problemas. Simplesmente lançam-se chavões, fazem-se afirmações contundentes, propagam-se slogans na forma de sentenças carregadas de sabedoria. Este bombardeio diário modela a opinião pública, porque as pessoas acabam tomando o que se afirma como o que todos pensam como aquilo de que todos falam como o que se usa o atual, o normal, o que faz norma e se impõe.

Atualmente, a força do número é determinante, já que o que é decisivo depende do número de votos. O número é algo quantitativo, não qualitativo. Daí a tendência a igualar todos os cidadãos, para que ninguém tenha poder de direção de ordem espiritual e a opinião pública possa ser modelada impunemente por quem domina os meios de comunicação. Uma das metas do demagogo é anular, de uma forma ou outra, aqueles que podem descobrir suas trapaças, seus truques de ilusionista.

A redundância desinformativa tem um poder insuspeitável de criar opinião, fazer ambiente, estabelecer um clima propício a toda classe de erros. Basta criar um clima de superficialidade no tratamento dos temas básicos da vida para tornar possível a difusão de todo tipo de falsidades. Segundo Anatole France, “uma tolice repetida por muitas bocas não deixa de ser uma tolice”. Certamente, mil mentiras não fazem uma só verdade. Mas uma mentira ou uma meia verdade repetida por um meio poderoso de comunicação se converte em uma verdade de fato, incontrovertida; chega a construir uma “crença”, no sentido orteguiano de algo intocável, de base, em que se assenta a vida intelectual do homem e que não cabe discutir sem expor-se ao risco de ser desqualificado. A propaganda manipuladora tende a formar este tipo de “crenças” com vistas a ter um controle oculto da mente, da vontade e do sentimento da maioria.

O grande teórico da comunicação MacLuhan cunhou a expressão: “o meio é a mensagem”; não se diz algo porque seja verdade; toma-se como verdade porque se diz. Aquele que está sabendo do que se passa nos bastidores tem algum poder de discernimento. Mas o grande público permanece fora dos centros que irradiam as mensagens. É insuspeitável o poder que implica a possibilidade de fazer-se presente nos cantos mais afastados e penetrar nos lares e falar ao ouvido de multidões de pessoas, sem levantar a voz, de modo sugestivo.

Antídoto contra a manipulação

A prática da manipulação altera a saúde espiritual de pessoas e grupos. Eles possuem defesas naturais contra esse vírus invasor? É possível contar com algum antídoto contra a manipulação demagógica?

Atualmente é impossível de fato reduzir o alcance dos meios de comunicação ou submetê-los a um controle de qualidade eficaz. Não há defesa mais confiável do que a devida preparação por parte de cada cidadão. Tal preparação inclui três pontos básicos:

1) Estar alerta, conhecer detalhadamente os ardis da manipulação.

2) Pensar com rigor, saber utilizar a linguagem com precisão, propor bem as questões, desenvolve-las com lógica, não cometer saltos no vazio. Pensar com rigor é uma arte que devemos cultivar. Aquele que pensa com rigor dificilmente é manipulável. Um povo que não cultive a arte de pensar, com a precisão devida, está à mercê dos manipuladores.

3) Viver criativamente. O que há de mais valioso na vida somente se pode aprender verdadeiramente quando se vive. Se você, por exemplo, promete criar um lar com outra pessoa e for fiel a essa promessa, vai aprendendo dia a dia que ser fiel não se reduz à capacidade de agüentar. Agüentar é para muros e colunas. O homem está chamado a algo mais alto, a ser criativo, ou seja: a ir criando em cada momento o que prometeu criar. A fidelidade tem um caráter criativo.

A mobilização de um contra-antídoto: a confusão da vertigem com êxtase

Se tomarmos estas três medidas, seremos livres apesar da manipulação. Mas aqui surge um grave perigo: quem deseja dominar-nos está pondo em jogo um contra-antídoto, que consiste em confundir dois grandes processos de nossa vida: o da vertigem e o do êxtase. Se cairmos nesta armadilha, perderemos definitivamente a liberdade.

A vertigem é um processo espiritual que começa com a adoção de uma atitude egoísta. Se sou egoísta na vida, tendo a considerar-me como o centro do universo e a tomar tudo o que me rodeia como meio para meus fins. Quando me encontro com uma realidade -por exemplo, uma pessoa- que me atrai porque pode saciar meus apetites, me deixarei fascinar por ela. Deixar-se fascinar por uma pessoa significa deixar-se arrastar pela vontade de dominá-la para pô-la a meu serviço. Quando estou a caminho de dominar aquilo que inflama meus instintos, sinto euforia, exaltação interior. Parece que estou para obter uma rápida e comovedora plenitude pessoal. Mas essa comoção eufórica degenera imediatamente em decepção, porque, ao tomar uma realidade como objeto de domínio, não posso encontrar-me com ela, e não me desenvolvo como pessoa. Lembremos que o homem é um ser que se constitui e desenvolve através do encontro. Essa decepção profunda me produz tristeza. A tristeza sempre acompanha a consciência de não estar a caminho do desenvolvimento como pessoa. Essa tristeza, quando se repete uma e outra vez, se torna envolvente, asfixiante, angustiante. Vejo-me esvaziado de tudo o que necessito para ser plenamente homem. Ao vislumbrar esse vazio, sinto vertigem espiritual, angústia.

Se o sentimento de angústia é irreversível porque não sou capaz de mudar minha atitude básica de egoísmo, a angústia dá lugar ao desespero: a consciência lúcida e amarga de que tenho todas as saídas fechadas para minha realização pessoal.

Resumindo: a vertigem não exige nada no princípio, promete tudo e tira tudo no final. A vertigem te enche de ilusões e acaba convertendo-te num iludido.

Vejamos agora o processo oposto: o do êxtase ou criatividade. Se não sou egoísta, mas generoso, não reduzo o que me rodeia a meio para meus fins. Eu sou um centro de iniciativa, mas você também o é. Por isso lhe respeito como você é e no que você está chamada a ser. Este respeito me leva a colaborar com você, não a lhe dominar. Colaborar é articular minhas possibilidades com as suas. E esta articulação é o encontro. Ao encontrar-me, desenvolvo-me como pessoa e sinto alegria. Esta alegria, em seu grau máximo, se chama entusiasmo. Entusiasma-me encontrar realidades que me oferecem tantas possibilidades de agir criativamente que me elevam ao melhor de mim mesmo. Essa elevação é o êxtase. Quando me sinto próximo à realização de minha vocação mais profunda, experimento uma grande felicidade interior. Esta felicidade me leva à construção de minha personalidade, da minha e as daqueles que se encontram comigo. Aqui está um dado decisivo: No processo de êxtase o encontro cria vida de comunidade. O processo de vertigem a destrói.

O êxtase é um processo espiritual que ao princípio exige de você por inteiro, lhe promete tudo e ao final lhe dá tudo. O que é que exige no princípio? Generosidade. Você não encontrará nem uma só ação que seja criativa no esporte, na vida de relação, na vida estética ou religiosa que não tenha em sua base alguma dose de generosidade.

Ficam claras as conseqüências da vertigem e do êxtase:

· A vertigem anula pouco a pouco a criatividade humana – porque impossibilita o encontro, e toda forma de criatividade ocorre no homem através da construção de diversos modos de encontro-, diminui ao máximo a sensibilidade para os grandes valores, torna impossível a construção de formas elevadas de unidade.

· O êxtase, ao contrário, incrementa a criatividade, a sensibilidade para os grandes valores, a capacidade de unir-se de forma sólida e fecunda com as realidades ao redor.

Agora podemos responder lucidamente à pergunta que deixamos pendente. Dizíamos que o tirano domina os povos reduzindo as comunidades a meras massas. Faz isso minando a capacidade criadora de cada uma das pessoas que constituem tais comunidades. Este empobrecimento das pessoas se consegue orientando-as para diversas formas de vertigem não para o êxtase. Para isso o demagogo manipulador confunde ambas as formas de experiência, e diz às pessoas, sobre tudo aos jovens: “Concedo a vocês todo tipo de liberdades para realizarem experiências exaltantes de vertigem. Essa exaltação é a verdadeira forma de entusiasmo, e conduz à felicidade e à plenitude”.

Se cairmos nesta armadilha ardilosa, não teremos futuro como pessoas. Vertigem e êxtase são polarmente opostos em sua origem -que é a atitude de egoísmo, por um lado, e a de generosidade, por outro- e são diferentes em seus fins: A vertigem tende ao ideal de dominar e desfrutar; o êxtase se orienta para o ideal da unidade e solidariedade. Confundir ambas as experiências significa projetar o prestígio secular das experiências que os gregos denominavam êxtase -elevação ao que há de melhor em si mesmo- sobre as experiências de vertigem e dar uma justificação aparente às práticas que conduzem o homem a formas de exaltação aniquiladora.

Nossa vontade de sobrevivência como seres nos leva a perguntar se há um antídoto contra a confusão entre vertigem e êxtase. Afortunadamente, há, e se baseia na convicção de que o ideal é que decide tudo em nossa vida. Somo seres dinâmicos, devemos configurar nossa vida de acordo com um ideal; temos liberdade para assumir um ideal ou outro como meta da existência, impulso e sentido de nosso agir, mas não podemos evitar que o ideal do egoísmo e de domínio nos exalte primeiro e nos destrua ao final, e que o ideal da generosidade e de unidade nos exija no princípio um grande desprendimento e nos dê a plenitude no final. O fato de orientar a vida para este ideal plenificante nos impulsiona a escolher em cada momento o que é mais adequado para nosso verdadeiro ser. Esta liberdade interior nos imuniza em boa medida contra a manipulação.

A configuração de um Novo Humanismo

Uma vez que recuperemos a linguagem seqüestrada pelos manipuladores e ganhemos liberdade interior, podemos abordar com garantia de êxito a grande tarefa que a humanidade atual tem diante de si: dar vida a uma nova forma que assuma as melhores realizações da Idade Moderna e supere suas deficiências, as que provocaram duas hecatombes mundiais. Esta tarefa, que em linguagem religiosa está sendo chamado de “re-evangelização”, somente poderá levar-se a cabo se formos à raiz de nosso agir. A raiz é o ideal que nos move.

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